
Características e Aspectos Regulatórios em Diferentes Jurisdições
O arrendamento mercantil, ou leasing, é uma ferramenta estratégica que permite o uso de ativos sem a necessidade de aquisição imediata. Esse mecanismo é amplamente utilizado em diversos setores da economia, com destaque para a indústria da aviação. Na essência, trata-se de um contrato entre um arrendador (lessor) e um arrendatário (lessee), no qual o lessor concede ao lessee o direito de uso de um ativo por um período determinado, mediante pagamentos regulares. Dentro desse contexto, destacam-se duas principais modalidades de leasing: o leasing operacional e o leasing financeiro. Em ambos os casos, a titularidade legal do ativo permanece com o lessor. No entanto, o leasing financeiro transfere ao lessee os riscos e benefícios substanciais da propriedade, assemelhando-se na prática a uma aquisição financiada, transferindo ao lessee a maior parte dos ônus e bônus associados à propriedade. Já o leasing operacional preserva o lessor como proprietário do ativo, oferecendo ao lessee maior flexibilidade operacional. No setor aéreo, o leasing operacional pode ser classificado em algumas categorias que podem, por vezes, possuir nomenclaturas diferentes, demonstrado na tabela a seguir1: Características do Arrendamento Dry Lease Wet Lease ACMI Damp Lease Aeronave Sim Sim Sim Tripulação Não Sim Tripulação limitada Maintenance Não Sim Sim Insurance Não Sim Sim Duração do lease Longa duração Curta duração Curta duração Certificado de Operador Lessee Lessor Lessor O wet lease é particularmente relevante para o setor aeronáutico devido à sua abrangência e flexibilidade. A seguir, exploramos suas principais características, aplicações práticas e aspectos regulatórios em diferentes jurisdições. Wet lease: Características e Aplicações O wet lease, também conhecido como ACMI (Aircraft, Crew, Maintenance and Insurance)2, caracteriza-se pela integração de aeronave e serviços essenciais em um único contrato. Nessa modalidade, o controle operacional da aeronave permanece sob responsabilidade do lessor (operador técnico), enquanto o controle comercial (como a venda de passagens e gestão de rotas) é atribuído ao lessee (operador comercial). Os principais cenários de utilização do wet lease incluem: Gerenciamento de picos de demanda, sem necessidade de expansão permanente da frota; Substituição temporária de aeronaves durante manutenção; Teste de novas rotas, avaliando viabilidade antes de aquisição de frota própria; e Operação em mercados com restrições temporárias, permitindo continuidade dos serviços aéreos. Modelo de Remuneração e Prazo de Vigência Uma das principais características do wet lease é a forma de remuneração, baseada no tempo de operação da aeronave. As horas de voo são contabilizadas desde o início do deslocamento para um voo até sua efetiva conclusão em solo (block to block time3). Dependendo do tipo de aeronave e dos termos contratuais, é comum que o lessor estabeleça um limite mínimo garantido de block to block time por mês, assegurando uma receita mínima, independentemente do uso efetivo da aeronave. A duração dos contratos geralmente varia entre um mês e dois anos, enquanto períodos inferiores a um mês costumam ser classificados como voos fretados personalizados, também conhecidos como ad-hoc charters4. Custos Adicionais da Operação Embora o lessor seja responsável por fornecer a aeronave e sua operação, os custos adicionais relacionados à realização dos voos recaem sobre o lessee. Estes custos incluem despesas como combustível, taxas aeroportuárias (como pouso, manuseio, estacionamento e armazenamento), além da hospedagem da tripulação, que abrange alimentação e transporte. Em operações internacionais, ainda podem ser aplicadas tarifas de visto, taxas de importação e impostos locais, que também ficam sob a responsabilidade do lessee. Além disso há a cobrança das taxas de sobrevoo e navegação. Durante as operações, utiliza-se um número de registro emitido pela Organização da Aviação Civil Internacional (OACI), atribuído às companhias aéreas. Os países sobrevoados enviam as guias de recolhimento referentes ao controle de tráfego aéreo ao explorador ou proprietário da aeronave registrada sob este código e, para evitar que esses encargos sejam direcionados ao seu próprio registro, o lessor geralmente exige que o lessee forneça e utilize seu próprio código de voo, prática comum entre companhias aéreas de países membros da OACI. Alternativamente, pode-se estabelecer um acordo de codeshare, permitindo que uma companhia aérea utilize o código designador de outra ou compartilhe o mesmo código na operação.5 Regulamentação do Wet Lease A regulamentação do wet lease varia conforme o país, refletindo preocupações locais com segurança, concorrência e proteção da indústria aeronáutica. Brasil No Brasil, o wet lease é regulamentado pelo Código Brasileiro de Aeronáutica (CBA – Lei nº 7.565/1986)6, os Regulamentos Brasileiros da Aviação Civil (RBAC) nº 1197, 1218 e 1359 e a Instrução Suplementar (IS) nº 119-011 Revisão A10. Os principais requisitos incluem: Autorização prévia da ANAC, mediante comprovação de conformidade técnica e de segurança de acordo com os padrões estabelecidos pelos RBACs, que garantirão que as aeronaves arrendadas atendam aos requisitos técnicos e operacionais necessários para operar no espaço aéreo brasileiro. O RBAC nº 119, por exemplo, regula a certificação de operadores aéreos, enquanto os RBACs nº 121 e 135 tratam, respectivamente, das operações de transporte aéreo regular e não regular; Exigência de contratação de tripulação sob legislação trabalhista nacional, de acordo com o Artigo 6º, § 2º, da Nova Lei do Aeronauta (Lei nº 13.475/2017), as tripulações que operam em território brasileiro em operações domésticas devem estar contratadas sob regime da legislação trabalhista nacional. Essa disposição garante que os direitos e deveres dos aeronautas brasileiros sejam preservados, mesmo em contextos envolvendo aeronaves de bandeira estrangeira; e Manutenção da aeronavegabilidade, conforme RBACs 121 e 135, com responsabilidades compartilhadas entre operador técnico e comercial. Esses regulamentos, complementados pela Instrução Suplementar nº 120-016B11, exigem que tanto o operador técnico quanto o comercial compartilhem a responsabilidade pela manutenção das condições de segurança ao longo de todo o período do contrato. Essa divisão de responsabilidades reforça a importância de uma gestão colaborativa e alinhada aos padrões técnicos da ANAC, garantindo eficiência operacional e preservando a segurança das operações aéreas em conformidade com a legislação brasileira. Estados Unidos Nos EUA, o wet lease é regulamentado pelo Título 14 do Código de Regulamentos Federais (CFR), Parágrafo 119.5312, sob supervisão da Federal Aviation Administration (FAA). Os requisitos principais são: Aprovação prévia da FAA, incluindo análise detalhada do contrato de leasing; Proibição do wet lease por transportadoras estrangeiras, proibindo, conforme o Parágrafo 119.53 (b)13 que transportadoras norte-americanas realizem wet leasing de transportadoras aéreas estrangeiras ou de qualquer outra pessoa estrangeira; Exigência de certificação rigorosa de tripulação, manutenção e despacho, a FAA avalia criteriosamente fatores como o treinamento das tripulações, a aeronavegabilidade contínua das aeronaves e a programação de voos, assegurando que as operações sejam conduzidas de maneira segura e eficiente. Além disso, exige-se que o operador possua a autoridade econômica aplicável, emitida pelo Departamento de Transporte (DOT), em conformidade com o Parágrafo 129.1 (a)14 do CFR, para realizar operações comerciais. Por fim, o modelo regulatório dos Estados Unidos reflete um compromisso com a proteção do mercado interno e com a segurança operacional. Embora não existam medidas explícitas de proteção à indústria local, as restrições ao uso de aeronaves estrangeiras e os rigorosos padrões de certificação garantem que as operações de wet leasing sejam realizadas com segurança e eficiência, reforçando o controle de qualidade e a competitividade do setor aéreo norte-americano. União Europeia Na União Europeia (UE) o wet lease é regulado pelo Regulamento (CE) nº 1008/200815, supervisionado pela European Union Aviation Safety Agency (EASA). Os principais aspectos incluem: Autorização prévia pelas autoridades nacionais de aviação. A supervisão das operações é realizada tanto pelas autoridades nacionais de aviação quanto pela European Union Aviation Safety Agency (EASA), que define padrões técnicos e de segurança para a aviação civil na região; Permissão de leasing de aeronaves de terceiros apenas em casos excepcionais. De acordo com o Artigo 13º do Regulamento (CE) nº 1008/2008, contudo, a regulamentação europeia apresenta uma particularidade: o arrendamento de aeronaves de países terceiros é permitido apenas em circunstâncias excepcionais, como a indisponibilidade de aeronaves no mercado interno ou demandas operacionais específicas. Nesse sentido, o Artigo 13º ainda exige que as companhias aéreas comprovem que o arrendamento é temporário e justificado por circunstâncias excepcionais, prevenindo seu uso como estratégia de redução de custos trabalhistas; Exigência de Air Operator Certificate (AOC) e conformidade com padrões da EASA. O operador estrangeiro deve possuir um Air Operator Certificate (AOC) válido e comprovar que suas práticas de manutenção e operação estão alinhadas aos regulamentos europeus, como o Regulamento (UE) nº 1321/201416, enquanto a aeronave arrendada deve atender aos padrões estabelecidos no Anexo 8 da OACI, garantindo segurança durante toda a operação. Com a abordagem descrita, a regulamentação da UE reflete uma integração de prioridades que combina eficiência operacional, elevados padrões de segurança e proteção ao mercado interno, destacando o equilíbrio necessário entre a flexibilidade comercial das companhias aéreas e a preservação de condições justas de concorrência no setor. Conclusão O modelo de wet leasing desempenha um papel fundamental na indústria da aviação, oferecendo flexibilidade operacional e soluções estratégicas para companhias aéreas em diferentes contextos, como o gerenciamento de demanda sazonal, a substituição temporária de aeronaves e a expansão de operações para novos mercados. Sua estrutura integrada, que combina aeronave, tripulação, manutenção e seguro em um único contrato, permite aos operadores comerciais otimizar recursos e minimizar riscos, ao mesmo tempo em que assegura um alto nível de padronização e segurança operacional. No entanto, a regulamentação deste modelo de arrendamento varia significativamente entre diferentes jurisdições, refletindo particularidades de cada mercado e as preocupações locais quanto à segurança, concorrência e proteção da indústria aeronáutica. No Brasil, a ANAC impõe requisitos rigorosos para a aprovação dessas operações, incluindo restrições quanto à utilização de tripulações estrangeiras em voos domésticos. Nos Estados Unidos da América, a FAA adota uma abordagem voltada para a certificação e controle operacional, garantindo que os contratos de arrendamento estejam alinhados com os altos padrões de segurança exigidos pelo setor. Já na União Europeia, a regulamentação busca equilibrar a necessidade de flexibilidade das companhias aéreas com a proteção do mercado interno, limitando a utilização de aeronaves de operadores de países terceiros. Portanto, o wet leasing, enquanto ferramenta para o setor aeronáutico, exemplifica como a combinação de flexibilidade operacional e aplicação rigorosa de regulamentações pode responder às demandas de um mercado globalizado. A análise comparativa entre diferentes jurisdições revela que a implementação eficaz desse modelo depende de um alinhamento cuidadoso, garantindo que os benefícios operacionais sejam alcançados sem comprometer a segurança, a concorrência no mercado e a sustentabilidade da indústria.